segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

JUGYU-NO-ZU - As Dez Figuras do Apascentar do Boi





Entre as várias formulações dos níveis de realização do Zen, nenhuma é mais amplamente conhecida do as Figuras do Apascentar do Boi, uma seqüência de dez ilustrações com comentários em prosa e verso. É provavelmente por causa da natureza sagrada do boi na antiga Índia que esse animal veio a ser usado como símbolo da natureza primária do homem, ou natureza búddhica.

Os desenhos originais e o comentário que os acompanha são atribuídos a Kakuan Shien (Kuo-an Shih-juan), um mestre Zen chinês do século XII, mas ele não foi o primeiro a ilustrar por meio de figuras as sucessivas etapas da realização Zen. Existem versões mais primitivas da quinta e oitava figuras, nas quais o boi branqueia progressivamente e o último desenho é um círculo. Isso deixa subentendido que a percepção da unidade (isto é, o apagamento de qualquer concepção de si e do outro) era a meta final do Zen. Kakuan porém, julgando que isso estava incompleto, acrescentou mais duas figuras além do círculo, para tornar claro que o homem do Zen de mias elevado desenvolvimento espiritual vive no mundo secular de forma e diversidade e se une com a máxima liberdade aos homens comuns, inspirando-os, pela sua compaixão e irradiação, a andar pelo caminho do buddha. Essa versão foi a mais largamente aceita no Japão e se revelou no decorrer dos anos como uma fonte de instrução e inesgotável inspiração para os estudantes Zen.

Adaptado do livro Os Três Pilares do Zen (Editora Itatiaia).


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1. Procurando o boi

O boi nunca se extraviou realmente, então por que procurá-lo? Tendo dado as costas à sua verdadeira natureza, o homem não pode vê-lo. Por causa de sua corrupção, perdeu de vista o boi. Repentinamente, defronta-se com um labirinto de caminhos cruzados. A ambição de ganhar terreno e o pavor da perda surgem como chamas extintas; idéias de certo e errado projetam-se como adagas.

Desolado através das florestas e aterrorizado nas selvas, ele procura um boi que não encontra.
Acima e abaixo, rios escuros, sem nome espraiados;
Em matas espessas ele percorre muitas trilhas.
Cansado até os ossos, com o coração pesado, continua a buscar algo que não pode encontrar.
Ao entardecer, escuta cigarras gorjeando nas árvores.


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2. Encontrando os rastros

Através dos sutras e dos ensinamentos, ele distingue os rastros do boi. Foi informado que, assim como vasos de ouro de diferentes feitios são basicamente do mesmo ouro, também cada e toda coisa é uma manifestação do si. É, porém, incapaz de distinguir o bem do mal, a verdade da mentira. Não passou realmente pelo portão, mas tenta ver os rastros do boi.

Viu pegadas sem número
Na floresta e à margem das águas.
Em que distâncias vê ele a relva pisada?
Mesmo as gargantas mais profundas das mais altas montanhas
Não podem esconder o focinho desse boi que toca diretamente o céu.


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3. Primeiro vislumbre do boi

Se ele apenas escutar atentamente os sons cotidianos, chegará à compreensão e no mesmo instante verá a verdadeira fonte. Os seis sentidos não são diferentes dessa verdadeira fonte. Em qualquer atividade a fonte está manifestamente presente. É algo análogo ao salto na água ou à liga na tinta. Quando a visão interior está corretamente focalizada, chega-se à compreensão de que aquilo que é visto é idêntico à verdadeira fonte.

Um rouxinol gorjeia num ramo,
O som brilha nos salgueiros ondulantes.
Ali está o boi, onde poderia esconder-se?
Essa esplêndida cabeça, esses cornos majestosos,
Que artista poderia retratá-lo?


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4. Agarrando o boi

Hoje ele encontrou o boi, que tinha estado longamente concorveando nos campos agressores e realmente o agarrou. Por tanto tempo ele demonstrou nestes arredores que não era fácil fazê-lo romper com os velhos hábitos. Continua com os velhos hábitos. Continua a ansiar por pastagens cheirosas, é ainda obstinado e indomável. Se o homem quiser domá-lo inteiramente, tem de usar seu chicote.

Ele precisa agarrar o laço com firmeza e não deixá-lo escapar
Porque o boi tem ainda tendências doentias.
Ora se precipita para as montanhas,
Ora vagueia numa garganta nevoenta.


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5. Domando o boi

Ao surgir um pensamento, outro e mais outro nasceram. A iluminação traz a compreensão de que esses pensamentos não sã irreais, já que brotam de nossa verdadeira natureza. É somente porque a ilusão ainda permanece que eles são considerados irreais. Esse estado de ilusão não tem origem no mundo objetivo, mas em nossas próprias mentes.

Ele deve segurar com firmeza o cabresto e não permitir ao boi vaguear
Para que não se extravie por lugares lamacentos.
Devidamente cuidado, torna-se limpo e gentil.
Solto, segue de bom grado a seu dono.


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6. Montando no boi e trazendo-o de volta à casa

Cessou a luta, ganho ou perda não mais o afetam. Ele cantarola melodias rústicas dos lenhadores e toca os cantos simples das crianças da aldeia. Montando no boi, contempla serenamente as nuvens no alto. Não volta a cabeça na direção das tentações. Embora alguém possa tentar perturbá-lo, permanece impassível.

Cavalgando livre como o ar, ele volta animadamente para casa
Através da bruma a tarde, de capa e amplo chapéu de palha.
Aonde quer que vá, produz uma brisa fresca
Enquanto uma profunda tranqüilidade domina em seu coração.
Esse boi não precisa nem de uma folha de relva.


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7. O boi foi esquecido, ele está só

No Dharma não há dualidade. O boi é a natureza primária; ele o reconheceu agora. Uma armadilha não é mas necessária quando se apanhou um coelho, uma rede torna-se inútil quando se pegou um peixe. Como o ouro separado da escória, como a lua que atravessa as nuvens, um raio de luz brilha eternamente.

Somente no boi poderia chegar à casa
Mas eis que agora o boi desapareceu
E o homem se senta, sozinho e tranquilo.
O rubro sol anda alto no céu
Enquanto ele sonha placidamente.
Ao longe, sob o telhado de palma
Jazem seu chicote inútil e seu laço inútil.


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8. Esquecido do boi e de si mesmo

Todos os sentimentos ilusórios pereceram e as idéias de sanidade também se extinguiram. Ele não permanece no estado de "Eu sou um buddha" e supera rapidamente o estágio de "Agora me purifiquei do orgulhoso sentimento de que não sou buddha". Mesmo os mil olhos dos quinhentos buddhas e ancestrais não podem discernir nele uma qualidade específica. Se centenas de pássaros fossem agora juncar de flores o seu quarto, ele não poderia envergonhar-se de si mesmo.

O chicote, o laço, o boi e o homem pertencem igualmente ao vazio.
Tão vasto e infinito é o céu azul
Que não pode atingi-lo.
Conceito de nenhuma espécie.
Sobre um fogo ardente, um floco de neve não pode subsistir.
Quando a mente atinge esse estado,
Chega finalmente a compreensão
Do espírito dos antigos ancestrais.


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9. Voltando à fonte

Desde o puro princípio não houve tanto quanto um grão de poeira para macular a pureza intrínseca. Ele observa o crescer e o descrever da vida no mundo, enquanto permanece imparcial num estado de imperturbável serenidade. Esse crescer e decrescer não é fantasma ou ilusão, porém uma manifestação da fonte. Por que então há necessidade de lugar por alguma coisa? As águas são azuis, as montanhas verdes. Só consigo mesmo ele observa a mudança incessante das coisas.

Ele voltou à origem, retornou à fonte,
Mas foi em vão que tomou suas providências.
É com se estivesse agora cego e surdo.
Sentado em sua cabana, não almeja as coisas que estão fora.
Os riachos serpenteiam por si mesmos,
As flores vermelhas desabrocham naturalmente vermelhas.


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10. Entrando na praça do mercado com mãos serviçais

O portão de sua casinha está fechado e mesmo os mais sábios não podem encontrá-lo. Seu panorama mental desapareceu por fim. Segue seu próprio caminho, não tentando seguir os passos dos antigos sábios. Carregando uma cabaça, passeia pelo mercado; apoiado em seu bordão, volta para casa. Ele guia os estalajadeiros e os peixeiros no Caminho do Buddha.

Com o peito descoberto e descalço, ele entra na praça do mercado.
Enlameado e empoeirado, como sorri mostrando os dentes!
Sem recorrer a místicos poderes,
faz árvores secas florescerem de repente.

(Kapleau, Philip. Os Três Pilares do Zen. Coleção Corpo e Alma.
Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 1978. Pág. 313-323.)


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